quinta-feira, 14 de outubro de 2010

a vida por um cabo

Enquanto percorria os olhos por alguns vídeos caseiros que assistia, meus pensamentos se divergiam em opinião. Em um primeiro momento pensei: que gostoso e divertido podermos utilizar os diversos dispositivos disponíveis hoje para gravar cenas dos primeiros passos do filho querido, da primeira vez que provou uma laranja, o sono tranqüilo ou a peraltice para podermos rever, enviar para família e amigos distantes e até mesmo mostrar para esta criança quando crescida. O presente ganhado, a primeira viagem juntos, a noite no barzinho com os amigos. Momentos que valem um registro, sem dúvidas. Na contramão da previsão da nostalgia futura que necessitará desses recursos audio-visuais, coloquei-me no lugar do filmado ou fotografado, da criança que vê a mãe atrás de uma câmera. Neste instante considerei o quanto a relação está mediada por um aparelho eletrônico qualquer, pela vontade de se mostrar ou não para quem registra ou ser mostrado por quem registra, do distanciamento que se consolida. Imagino agora que as crianças têm uma missão ainda maior: não buscarem somente a admiração e afeto dos pais, mas também de um público. Buscar o pai ou mãe por trás daquele objeto. Falamos de relações mediadas pelo computador, eu diria, mediadas por eletrônicos. Que infeliz percepção. Antes da moda das páginas de relacionamento ou de vídeos, já era tão difícil o encontro entre pessoas. Existiam todos tipos de defesas que permeavam as relações e tornavam-nos distantes do eu saudável: o medo, a inveja, a mágoa, os traumas passados, que muitas vezes são colocados à frente em um encontro casual ou em uma discussão, na criação dos filhos, enfim, nem bem aprendemos a lidar com estes sentimentos, ou seja, com nós mesmos e já nos aparataram com dispositivos que permitem esse distanciamento. Distanciamento entre quem filma e quem é filmado, entre quem eu sou, quem eu gostaria de ser, como gostariam de me ver, como eu gostaria de ser visto.

Há um tempo fiz uma viagem. Todo o caminho de beleza esplendida. Contudo, a pessoa que me acompanhava havia esquecido a câmera fotográfica e reclamava a todo momento da bela paisagem que não podia ser registrada, chegando ao mau humor e quase eu também entrando neste estado. Olhei para a paisagem, para o que me era oferecido e que me colocava em cheque: qual seria minha escolha, contemplar, ficar em paz ou queixar da vida, da falta de sorte, o mau humor. Optei pelo belo, pela harmonia. Essa câmera realmente exerce muito poder nas pessoas. Te faz pertencer ao mundo virtual, em todos os possíveis significados dessa frase . Pergunto: onde deve ficar o verdadeiro registro?